domingo, 11 de fevereiro de 2024

O "RITO TRIDENTINO" AINDA É O RITO ROMANO PROPRIAMENTE DITO?

Como sempre faço, começo respondendo que, ao que me parece, NÃO, o chamado “rito tridentino” se transformou em um rito litúrgico autônomo que, atualmente, não é mais o rito romano propriamente dito (ele foi historicamente o rito romano, não o é mais), mas sim outro rito integrante da família litúrgica ocidental (família litúrgica dos ritos usados pelo que hoje chamamos de Igreja Latina).

Em primeiro lugar, usarei aqui o nome popular “rito tridentino” como sinônimo do rito romano em sua forma padrão ou ordinária que estava em uso na Igreja Latina até a reforma litúrgica ordenada pelo Concílio do Vaticano II.

Quando, em 16 de julho de 2021, foi promulgado o Motu Proprio Traditionis Custodes, sobre o uso da Liturgia Romana anterior à reforma de 1970, algumas pessoas vieram perguntar-me qual passava a ser a situação do chamado “rito tridentino” na Igreja, já que não se falava mais em “Forma Ordinária” e “Forma Extraordinária” do mesmo Rito Romano, como ocorria no Motu Proprio Summorum Pontificum de 2007.

Agora, o art. 1 de Traditionis Custodes é bem taxativo: “Art. 1. Os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano”.

Confesso que, num primeiro momento, a frase “única expressão da lex orandi do Rito Romano” causou-me estranheza. Acaso a Santa Sé não estaria ciente de que mesmo o rito romano reformado após o Concílio do Vaticano II admite variantes, tais como o uso zairense e o uso anglicano? E, se bem é assim, o rito “tridentino” também não seria mais uma dessas variantes (daí ser chamado por Summorum Pontificum de Forma Extraordinária do Rito Romano)?

Como então poderia haver uma única expressão da lex orandi do Rito Romano? Os fatos concretos não contrariariam essa afirmação?

Depois, relendo com calma e fazendo nova reflexão sobre o tema, cheguei a outra visão do assunto, que me permite entender de forma mais adequada o art. 1 da Traditionis Custodes. É claro que esta é apenas a minha interpretação da questão, pois o próprio Motu Proprio não traz maiores explicações sobre a matéria. Passo então a expor essa interpretação.

A chamada família litúrgica ocidental é composta por diversos ritos usados pela Igreja Latina (a maior de todas as Igrejas sui iuris que compõem a Igreja Católica), dentre os quais podemos elencar, por exemplo, o rito ambrosiano (ou milanês, presente até hoje na Arquidiocese de Milão – Itália); o rito hispânico ou mozárabe (residualmente celebrado na Espanha em Sevilha e Toledo) e o rito lionês (residualmente celebrado em Lyon, na França). Contudo, nesta família, o rito mais comum e espalhado por todo o mundo é o rito romano, este mesmo rito que, por determinação do Concílio do Vaticano II, sofreu reformas litúrgicas a partir de 1969, ainda no pontificado de São Paulo VI.

Embora novos livros litúrgicos, após o Concílio do Vaticano II, tenham sido elaborados pela Santa Sé para o rito romano (sendo que alguns desses novos livros só vieram à luz no pontificado do Papa São João Paulo II), desde o início da reforma litúrgica, autorizações foram dadas a alguns sacerdotes (sobretudo idosos) e grupos reduzidos de fiéis para que continuassem a usar a liturgia do rito romano anterior à reforma litúrgica determinada pelo Concílio Vaticano II. A permanência, ainda que residual, da possibilidade de celebração do popularmente conhecido como “rito tridentino” atesta o fato de que ele não foi abolido, mas meramente teve seu uso restringido, de modo a dar mais espaço para o uso reformado do rito romano.

Summorum Pontificum de 2007 diminuiu as restrições para uso dessa forma anterior do rito romano, atestando algo que já estava claro: que ele não havia sido abolido e que a autoridade competente da Igreja, do mesmo modo que tem poder para restringir, tem poder para ampliar o uso, como de fato foi feito por esse Motu Proprio de 2007.

Ocorre que, em 16 de julho de 2021, a autoridade competente da Igreja novamente restringiu o uso do dito “rito tridentino”, mas novamente sem aboli-lo, por meio do Motu Proprio Traditionis Custodes. Todavia, fez isto de uma maneira curiosa, que, se lida com pressa, pareceria ter abolido o “rito tridentino”, ao estabelecer no art. 1: “Os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano”.

Ora, se bem é assim, então o “rito tridentino” teria sido abolido, pois ele não é mais uma expressão da lex orandi do Rito Romano. Mas essa afirmação seria absurda, pois o próprio Traditionis Custodes, em seus artigos subsequentes, vai regulamentar o modo pelo qual este “rito tridentino” poderá ainda ser celebrado.

Então como interpretar de forma não absurda o art. 1?

Uma das chaves de interpretação razoável deste art. 1 parece-me que se encontra no art. 4: “Art. 4. Os presbíteros ordenados após a publicação do presente Motu proprio, que pretendam celebrar com o Missale Romanum de 1962, devem dirigir um requerimento formal ao Bispo diocesano o qual, antes de conceder a licença, consultará a Sé Apostólica”.

Esta sistemática de obter licença prévia da Santa Sé antes de poder começar a celebrar um determinado rito católico é bastante conhecida na praxe da Igreja, quando estamos a tratar de sacerdotes bi-rituais, isto é, com autorização dada pela Santa Sé para celebrar os sacramentos em outro rito católico diferente do seu próprio.

Assim, se um sacerdote católico oriental deseja, por exemplo, celebrar também no rito romano, seu Bispo não pode conceder a ele essa faculdade sem que antes a Sé Apostólica mesma conceda essa faculdade bi-ritual, tal como expressamente previsto no cânon 674, § 2 do Código de Cânones das Igrejas Orientais de 1990 (o equivalente ao Código de Direito Canônico latino, só que para os católicos orientais):

"Cân. 674 - § 1. Na celebração dos sacramentos, o que está contido nos livros litúrgicos deve ser observado diligentemente.

§ 2. Um ministro deve celebrar os sacramentos de acordo com as prescrições litúrgicas de sua própria Igreja sui iuris, salvo disposição legal em contrário ou que tenha obtido uma faculdade especial da Sé Apostólica."

Ora, se a licença da Sé Apostólica é necessária justamente por se tratar de ritos diferentes, então o fato de que, a partir de agora, os novos sacerdotes de rito romano, para poderem celebrar o “rito tridentino”, precisarão da autorização de Roma faz com que esse regime de dois ritos diferentes se aplique aqui também.  

Exemplo: se um sacerdote da Igreja Católica Armênia quiser celebrar no rito romano, por ser um rito diferente do dele, ele precisará pedir licença para a Santa Sé.

Agora, se um neosacerdote do rito romano quiser celebrar no “rito tridentino”, por ser um rito diferente, ele também precisará pedir licença para a Santa Sé.

Logo, parece ser que a Santa Sé está a indicar que o rito romano atual e o “rito tridentino” já não são o mesmo rito, mas ritos diferentes, ainda que próximos e ambos pertencentes à mesma família litúrgica ocidental.

Tal interpretação parece ser corroborada por uma entrevista dada em 01/09/2021 pelo Papa Francisco a Carlos Herrera, para uma rádio espanhola, ao tratar do tema:

Carlos Herrera: No sé si el Papa Francisco es muy de dar un puñetazo con fuerza encima en la mesa. ¿Quizá el último golpe sobre la mesa ha sido el documento pontificio en el que se limita la celebración de las 'misas tridentinas'? Y le pido además que le explique a mi audiencia qué es la 'misa tridentina', qué tiene la misa tridentina que no sea preceptiva.”

Papa Francisco: […] Después de este motu proprio, un sacerdote que quiera celebrar no está en las condiciones de los otros --que era por nostalgia, por deseo, etc-- y ahí sí tiene que pedir permiso a Roma. Una especie de permiso de bi-ritualismo, que solamente lo da Roma. [Como] un sacerdote que celebra en rito oriental y rito latino, es bi-ritual pero con permiso de Roma. O sea, hasta el día de hoy, los anteriores siguen pero un poco ordenados. Más aún, pidiendo que haya un sacerdote que esté encargado no solamente de la liturgia sino de la vida espiritual de esa comunidad. Si usted lee bien la carta y lee bien el decreto, va a ver que simplemente es reordenar constructivamente, con cuidado pastoral y evitar un exceso a quienes no están…”

(Fonte: https://www.cope.es/programas/herrera-en-cope/el-papa-con-herrera/noticias/asi-hemos-contado-minuto-minuto-entrevista-carlos-herrera-papa-francisco-20210901_1473407 )

Veja-se como Papa Francisco também traça a analogia entre a licença de bi-ritualidade para sacerdotes católicos orientais e a “bi-ritualidade” para que novos sacerdotes de rito romano possam também celebrar o “rito tridentino”.

O Papa Francisco conhece bem essa sistemática, já que foi por anos, na Argentina, o Ordinário para os fiéis católicos orientais sem Ordinário próprio na Argentina, isto é, o Bispo que cuidava dos fiéis católicos orientais sem Bispo oriental próprio na Argentina. Ou seja, Traditionis Custodes parece ter sido pensado, nesse particular, nos moldes do previsto no cânon 674, § 2 do Código de Cânones das Igrejas Orientais de 1990 anteriormente exposto, isto é, partindo do pressuposto de que se trata de ritos católicos distintos, a exigir licença da Santa Sé para celebrar no outro rito diferente.

Explanada essa questão, ainda pareceria ficar uma lacuna: mas, se bem é assim, como resolver o problema de que, no próprio rito romano atual e reformado, existem o uso zairense (africano) e o uso anglicano (das comunidades recebidas no catolicismo vindas do anglicanismo)? Pois o art. 1 de Traditionis Custodes afirma: “Art. 1. Os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano”. Então o uso zairense e o uso anglicano não seriam formas de expressão da lex orandi do rito romano?

De forma alguma. O art. 1 é claro em dizer que “os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II são a única expressão da lex orandi do Rito Romano”. Ora, o uso zairense e o uso anglicano foram aprovados, bem como seus livros litúrgicos, durante o pontificado de São João Paulo II. Logo, estão plenamente cobertos pela previsão normativa do art. 1, sendo portanto também expressão da lex orandi do rito romano atual (o “rito tridentino”, nessa interpretação, já não é mais o rito romano, e sim um rito autônomo).

Esses dois usos, zairense e anglicano, são expressão do rito romano precisamente pelo fato de que são aprovados pós-reforma do Concílio Vaticano II, durante o pontificado de São João Paulo II, expressamente citado no art. 1 da Traditionis Custodes, o que explica o porquê de esses dois usos serem considerados expressão do rito romano e o “rito tridentino” já não ser mais expressão desse mesmo rito romano.

Como dito no início, essa é uma forma de buscar interpretar razoavelmente o art. 1 da Traditionis Custodes, mas apenas os anos vindouros irão nos indicar os rumos que a Igreja tomará em relação a esse antigo e venerável rito (aqui chamado de “tridentino”), pois nas últimas décadas presenciamos modificações no regime de permissões para sua celebração, ainda que nunca tenha sido abolido.


quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

É POSSÍVEL CUMPRIR DOIS PRECEITOS INDO A UMA ÚNICA MISSA?


Como já vimos em post anterior, o cânone 1248 permite que o fiel cumpra a obrigação de participar na Missa em dia de preceito indo à celebração eucarística ou no próprio dia de preceito, ou na sua véspera (tarde do dia anterior). Neste ano de 2017, o Natal do Senhor ocorrerá numa segunda-feira, dia 25 de dezembro, e o 4º Domingo do Advento no dia 24 de dezembro.
Em razão disso, alguns clérigos e leigos entraram em contato comigo ao longo da semana perguntando-me como fica a questão do cumprimento de ambos os preceitos (4º Domingo do Advento e Natal) no caso de o fiel católico ir a uma Missa celebrada na tarde do domingo 24 de dezembro. Estaria o fiel cumprindo dois preceitos com a participação em uma única Missa, a saber, o preceito do 4º Domingo do Advento (por ser a Missa celebrada no domingo), e ao mesmo tempo o preceito de Natal, por ser uma Missa celebrada na véspera (tarde do dia anterior) do Natal (25 de dezembro)?
O que posso dizer a essas pessoas que me procuraram? Que não há resposta definitiva, pois ausente um consenso entre os especialistas em direito canônico quanto a essa questão, tampouco existindo uma interpretação autêntica da Santa Sé sobre o tema à luz do cânone 1248 do Código de Direito Canônico de 1983. E se trata de debate relativamente recente na Igreja, pois a possibilidade de se cumprir o preceito na véspera é bastante recente, tendo menos de 100 anos (o que, convenhamos, numa Igreja quase bimilenar, não é nada).
Duas são as correntes que se colocam sobre o tema. A primeira, de que a cada preceito corresponde uma Missa, de modo que, se são dois preceitos a serem cumpridos (um para o 4º Domingo do Advento, outro para o Natal), o fiel deverá ir a duas Missas distintas para cumprir cada um dos preceitos. São representantes dessa corrente o canonista Edward Peters[1] (Doutor em Direito Canônico), o canonista Mons. Ralph Brown[2] (Doutor em Direito Canônico) e, no Brasil, o Pe. Alexandre de Carvalho Lugli[3] (Doutor em Direito Canônico), Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva[4] (Doutor em Teologia Moral) e o Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr.[5] (Mestre em Direito Canônico).
Reforça-se essa primeira interpretação fazendo-se menção a uma consulta feita à então Congregação para o Clero, em 1974, em que se perguntava se era possível cumprir dois preceitos com a participação em apenas uma única Missa celebrada na véspera do dia de preceito. A resposta da Congregação foi negativa, já que, à época, o cumprimento do preceito na véspera era uma mera concessão (indulto), com caráter excepcional. Da mesma forma, em 1974, a então Congregação para o Culto Divino, ao ser consultada sobre o tema do formulário litúrgico que deveria ser usado nesses casos, indiretamente tangenciou o tema, afirmando que, na véspera dos dias de preceito, “alguns dos fiéis cumprem o preceito referente ao dia atual e outros o que pertence ao dia seguinte”.[6]
A segunda corrente assume que o texto do atual cânone 1248 não faz qualquer restrição à possibilidade de se cumprir dois preceitos indo a uma única Missa, desde que essa seja celebrada na véspera do dia de preceito (ou ao menos que essa interpretação é tão possível e razoável quanto a primeira). São partidários dessa interpretação o canonista Pe. Ian B. Waters[7] (Doutor em Direito Canônico e vigário judicial emérito do Tribunal Eclesiástico de Vitória e Tasmânia – Austrália), os canonistas Pe. John M. Huels[8] e Pe. Piotr Kroczek[9] (Doutores em Direito Canônico, que aceitam como razoáveis ambas as opiniões, assumindo que existe uma real dúvida em toda a questão), Pe. Samuel Spiering[10] (Mestre em Direito Canônico e Defensor do Vínculo no Tribunal Eclesiástico da Diocese de Great Falls-Billings) e Pe. John Zuhlsdorf[11]. Esta é a opinião que pessoalmente sigo.
Explico o motivo pelo qual este é meu ponto de vista: para que o fiel tenha certeza moral da existência de uma obrigação, é necessário que a norma que estabelece tal obrigação seja razoavelmente clara. Sem essa clareza, estabelece-se uma dúvida que, enquanto não for definitivamente debelada pela autoridade competente, não pode obrigar o fiel (sobretudo em matéria grave como é o cumprimento do preceito de participar da Missa).
Ora, como demonstrado acima, não há acordo entre os poucos especialistas que trataram do tema (não há abundantes debates sobre a matéria em vários autores, uma vez que a possibilidade de cumprir o preceito na véspera é nova na História da Igreja). Diante disso, fico com a posição do Pe. John M. Huels de que, embora ambas as opiniões sejam razoáveis, está presente uma situação de dúvida de direito. Se os especialistas não chegam a um acordo, e a autoridade competente não se pronunciou de forma definitiva, interpretando ou melhorando a redação do cânone 1248, então o fiel goza da liberdade para atuar da forma que entender adequada. Esse princípio de liberdade de atuação quando a lei não é clara (duvidosa) é básico tanto no direito canônico como na teologia moral, e Santo Afonso Maria de Ligório apresenta, em sua obra magna “Teologia Moral[12], uma série de autores que o afirmam:
“1.° Se, na dúvida, a lei existe ou obriga.
Responde-se que tal lei de modo algum obriga, depois que se tenha feito uma suficiente e diligente investigação da verdade, excluindo-se, porém, o escândalo ou outro notável inconveniente; porque aí vigora a liberdade. Assim pensam comumente Suárez, Sánchez, Palao, os Salmanticenses, com Tapia, Villa-Lobos, Araújo e outros. S. Tomás expressamente o confirma: Ninguém está ligado a nenhum preceito senão mediante a ciência desse preceito. Escoto: Ninguém está obrigado a um preceito divino a não ser que lhe seja promulgado por alguém idôneo e autorizado. E também a Glosa: Na dúvida, ninguém se deve considerar obrigado (Authentica, Quibus modis). A mesma Glosa: Na dúvida, é lícito seguir o que mais lhe apraz. Bento XIV: Não se deve impor uma obrigação, quando não existe uma lei clara que a imponha. Prova-o claramente o direito canônico, que reza: A lei deve ser manifesta. – Se não estiveres seguro do que foi ordenado, não estás obrigado a cumpri-lo.Nas questões para as quais não há uma lei explícita, escolhei sempre a ação mais humana, observando a eqüidade. – Também ensinava S. Leão: Quando uma determinação é duvidosa ou obscura, sabemos que devemos seguir aquilo que não é contrário aos preceitos evangélicos, nem diferente das determinações dos Santos Padres. – Similarmente, diz Lactâncio: É estulto o homem que quer observar preceitos cuja falsidade ou veracidade se põem em dúvida. A razão disso é que Deus deu ao homem domínio sobre sua liberdade, segundo o dito pelo Apóstolo: Tendo poder sobre sua liberdade (I Cor. VII, 37), e como se lê no Eclesiástico (XV, 14 e seguintes): Deus constituiu o homem no princípio, e deixou-o na mão de seu conselho. Deu-lhe mandamentos e preceitos. Se os quiseres observar, eles te resguardarão. Assim, o homem possui liberdade para operar o que quiser, desde que não esteja proibido na lei, como diz S. Tomás: Diz-se lícito o que não é proibido por nenhuma lei... A lei permite tudo o que por ela não é proibido.”
Mas alguns dirão: ainda que os canonistas não se ponham de acordo, teríamos ainda as respostas da década de 1970 de dois órgãos da Santa Sé (Congregação para o Clero e Congregação para o Culto Divino). Contudo, existem alguns problemas em se tomar essas respostas como definitivas e como se solucionassem de uma vez por todas a questão.
O primeiro problema diz respeito ao fato de que em nenhum desses casos se trata de interpretação autêntica da norma canônica, pois ambos os dicastérios (órgãos) da Cúria Romana consultados não possuem atribuição para realizar a interpretação autêntica de normas canônicas (não se deve confundir norma canônica com norma litúrgica, e o cumprimento do preceito de participar da Missa em forma e tempo determinados decorre de norma canônica, não litúrgica). Ademais, ao que me consta, nenhuma dessas consultas foi ratificada em audiência pelo Romano Pontífice (o Papa), não tendo, portanto, valor jurídico-canônico de interpretação autêntica que obrigue os fiéis, mas de meras opiniões abalizadas em favor da primeira corrente.
Além disso, ambas as respostas partem de uma premissa que, se era verdadeira na década de 1970 (antes do Código de 1983), deixou de ser com o advento do novo Código de Direito Canônico em 1983. Esta premissa é a de que cumprir na véspera do dia de preceito a obrigação de ir à Missa é uma mera concessão dada por meio de indultos (uma exceção). De fato, historicamente, essa possibilidade surgiu como mera concessão e, nos primeiros tempos de seu surgimento, era inclusive necessária uma causa adequada para cumprir o preceito na véspera (por exemplo, alguém que tivesse de trabalhar num domingo ou algo do tipo). Na década de 1970, a Santa Sé concedia essa possibilidade a cada nação caso a caso. Era, à época, uma verdadeira exceção, e não a regra.
Ocorre que essa exigência foi se abrandando até dar origem ao atual cânone 1248 (surgido em 1983), que não mais trata o cumprimento do preceito na véspera como algo excepcional, mas sim como parte da atual regra normal de cumprimento do preceito. Hoje, não se pode dizer que um fiel que habitualmente cumpre o preceito dominical no sábado à tarde esteja em situação excepcional ou se valendo de mera exceção, concessão ou indulto, nem se pode dele exigir que cumpra o preceito no domingo. Está a cumprir o preceito de maneira tão usual quanto aquele que somente cumpre o preceito no domingo, pois o legislador supremo assim o determinou para a Igreja Universal, não se tratando mais de concessão específica e caso a caso como no passado, mas sim da lei hoje em vigor Essa a razão pela qual respostas dadas em época anterior ao Código de 1983, que mudou o panorama legislativo, não podem ser aplicadas diretamente hoje, sem que se atente para o fato de que a lei mudou, e aquilo que outrora era concedido como mero indulto (exceção) passou a ser a regra.
Veja-se também que a segunda resposta, da Congregação para o Culto Divino, de 1974, sequer tratava diretamente da questão do cumprimento do preceito pelo fiel, mas sim de quais eram os textos litúrgicos a serem usados quando havia sobreposição de dias de preceito. Por tanto, enfraquece-se o argumento quando a consulta não foi feita sobre a questão do cumprimento do preceito, mas sim sobre quais fórmulas litúrgicas o sacerdote deveria utilizar. A menção à questão do cumprimento do preceito pelo fiel se deu apenas en passant, ou seja, de passagem, mas não como objeto principal da consulta.
Por fim, a razão invocada por alguns para que haja a necessidade da participação em duas Missas está no fato de que, numa primeira Missa, o fiel participaria da liturgia do 4º Domingo do Advento, com as leituras, cantos e orações próprios desse Domingo (até um determinado horário de domingo), e na segunda Missa participaria de uma Missa com leituras, cantos e orações próprios do Natal.
Contudo, essa interpretação confunde liturgia com obrigação canônica: o cânone 1248 apenas exige que o fiel participe da Missa, não que seja uma Missa com temática específica, como já explicamos suficientemente em post anterior referido no início do post atual. A Missa pode ser de defuntos, de casamento, de ordenação presbiteral, de Confirmação (Crisma), de um outro rito da Igreja católica etc. Para dar exemplos, os calendários litúrgicos e suas comemorações são diferentes nas Igrejas católicas orientais. Existem católicos na Ucrânia que comemoram o Natal apenas em 7 de janeiro, por seguirem o antigo calendário juliano (e não o calendário gregoriano), sendo tal prática não apenas tradicional entre eles, mas não contestada pela Santa Sé. Ora, no dia 25 de dezembro, se o fiel for a uma dessas paróquias ucranianas, encontrará uma Missa do Advento, e não do Natal. Da mesma forma, como recordou-me um sacerdote e grande amigo pessoal, nas dioceses, quando o padroeiro é comemorado em um domingo do tempo comum, será a sua festa a ser celebrada, com o formulário próprio deste santo patrono, e não o domingo do tempo comum respectivo. O mesmo se diga das festas dos santos nas igrejas a ele dedicadas: enquanto todo o resto das paróquias comemora um domingo do tempo comum, o santo será comemorando nas igrejas a ele dedicadas com cores de vestes e formulário próprio daquele santo. O que prova mais uma vez que obrigação canônica de ir à Missa e espécie litúrgica de Missa a ser celebrada não são sinônimos.
Não se deve confundir a obrigação canônica dos fiéis de participar de uma Missa (seja ela qual for) com a questão litúrgica de quais leituras, cantos e orações devem ser utilizados até mesmo por outro motivo: os fiéis não possuem nenhum controle sobre isso. Quem escolhe o tipo de Missa que irá celebrar é o sacerdote, não o fiel leigo. Por exemplo, se o sacerdote, por equívoco, não celebra a Missa que estava liturgicamente prescrita para aquele dia, o fiel não cumpriu o preceito? Isto seria absurdo, e ninguém pode ser obrigado ao impossível, já que não é tarefa dos leigos dizer ao sacerdote que tipo de Missa ele deverá celebrar.
Portanto, para aqueles que exigem que o fiel vá a duas Missas para cumprir dois preceitos, nada impede que o fiel fosse domingo à noite (por volta de 18h) em uma Missa dita tradicionalmente “Missa do Galo” para cumprir o preceito de Domingo do Advento e, mais tarde (por volta de 21h), fosse a outra Missa do Galo. Esdrúxulo do ponto de vista litúrgico e até pouco recomendável quanto à formação da piedade litúrgica do fiel? Certamente. Mas não pecaria quem agisse assim, pois cumpriu os preceitos. Ou seja, a exigência de cumprimento de dois preceitos no mesmo dia, essa sim pode dar origem a atitudes estranhas e artificiais como a do exemplo acima, pois, repita-se, não há discussão séria entre os canonistas de que o cânone 1248 obriga apenas a ir à Missa, e não a uma Missa que tenha temática litúrgica determinada.
Há nisso um descompasso entre direito canônico e direito litúrgico, gerado exatamente pela nova possibilidade (antes inexistente) de cumprimento do preceito na véspera? Sem dúvida. Mas até que se resolva esse descompasso normativo de maneira adequada, é o que temos para hoje. Uma situação de dúvida. E, na dúvida, vige o favor libertatis (posição favorável à liberdade do fiel cristão diante de Deus).
Espero ter ajudado os irmãos e irmãs a formarem sua consciência diante dessa questão, deixando-os bastante livres para tomarem diante de Deus a decisão que reputarem mais adequada (ir a uma ou duas Missas), de acordo com sua disponibilidade de tempo e devoção pessoal.
E não penso que aqui valham aqueles argumentos de que “católico de verdade tem mais é que ir a quantas Missas puder”. Pois bem. Seria maravilhoso que todo católico pudesse ir à Missa diariamente. Mas pecam gravemente aqueles que não vão? Óbvio que não. Indo além: no Natal, o Missal Romano prevê 4 missas diferentes entre os dias 24 e 25 de dezembro – a Missa da Vigília, a Missa da Noite, a Missa da Aurora e a Missa do Dia, todas com formulários diferentes entre si (liturgicamente distintas). Acaso um católico que fosse às 4 missas poderia brandir com orgulho sua catolicidade perante os simples mortais que quase nunca vão a 4 Missas de Natal? (na verdade, mesmo entre os sacerdotes, a imensa maioria não celebra as 4). Seria caridoso que um pai ou mãe de família fosse a 4 Missas de Natal diferentes, deixando de lado sua família, ou, pior, obrigando todos a ir a 4 Missas, pois, afinal, o Missal Romano as prevê, e são todas liturgicamente diferentes, de modo que para melhor formar a piedade litúrgica deveríamos ir a todas?
Paro por aqui com minha reflexão sobre a criação de obrigações, sob a capa de piedade, quando a norma eclesiástica não foi clara. Penso que, em tal situação duvidosa, não se deve lançar aos ombros dos fiéis a carga pesada do pecado em matéria grave para um imbróglio que os fiéis não criaram. Mas bem que um grupo de bispos poderia fazer agora, sob a vigência do Código de 1983, uma consulta à Santa Sé (Pontifício Conselho para os Textos Legislativos) para sanar de uma vez por todas essa dúvida, não é mesmo? Fica aqui a minha filial sugestão natalina aos senhores bispos, sucessores dos Apóstolos, para que em anos vindouros a dúvida esteja solucionada, e esse meu post seja apenas uma reminiscência histórica. Santo e Feliz Natal a todos!




[2] BROWN, Ralph. Commentary to canon 1248. In: SHEEHY, Gerard et al. (ed.). The Canon Law: Letter and Spirit - A Practical Guide to the Code of Canon Law. London: The Canon Law Society of Great Britain and Ireland, 1995. p. 702: “It is to be noted, however, that when a Sunday and another holiday of obligation occur on two sucessive days, the assistance at no more than an evening Mass on the first of two such days does not fulfil the dual obligation”.
[3] LUGLI, Alexandre de Carvalho. Exegese da obrigação de participar na Missa dominical no CIC 1983. Cuadernos doctorales. Universidad de Navarra, 2002, Nº 19, p. 212. Disponível em: https://dadun.unav.edu/bitstream/10171/17652/1/cuadernos%20doctorales_derecho19-4.pdf
[6] Para a referência completa em português dessas consultas, ver o texto do Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva em: https://pt.aleteia.org/2017/12/14/cumpre-se-com-uma-so-missa-dois-preceitos-referentes-a-dois-dias-distintos-e-consecutivos/
[7] WATERS, Ian B. Canon 1248, The Concurrence of Liturgical Days and the Obligation of Assisting at Mass, Opinion. Roman Replies and CLSA Advisory Opinions 2008. Washington, DC: Canon Law Society of America, 2008.
[8] HUELS, John M. Canon 1248, Double Precept Fulfilled at One Mass, Opinion. Roman Replies and CLSA Advisory Opinions 1989. Washington, DC: Canon Law Society of America, 1989.
[9] KROCZEK, Piotr. Czy można wypełnić dwa obowiązki podczas jednej mszy świętej? Ruch Biblijny i Liturgiczny, 07/2016, Volume 67, Issue 1. Disponível em: https://rbl.ptt.net.pl/index.php/RBL/article/view/30 . Resumo em inglês em: https://doaj.org/article/ea041391a3bf4701adbb6eba92822fe9
[12] LIGÓRIO, S. Afonso Maria de. Teologia Moral. Tomo I. Da regra dos atos humanos. Trad. William Bottazzini Rezende e Tiago Gadotti. Rio de Janeiro: CDB, 2017. p. 172-173.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

CRISTÃOS NÃO-CATÓLICOS PODEM RECEBER A EUCARISTIA EM CELEBRAÇÕES EUCARÍSTICAS CATÓLICAS?

A resposta é SIM, mas existem condições para isto.

Recentemente, o Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, teria dito que não é possível a cristãos não-católicos receber a Eucaristia em celebrações eucarísticas católicas, pois seria necessário ser católico para receber a Eucaristia.  

Embora o cardeal esteja certo ao explicitar a regra geral e a razão teológica por trás dela (em regra, a Eucaristia, como sacramento da unidade, somente é administrada a fiéis católicos, e não a cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica Apostólica Romana), na verdade, em relação à "communicatio in sacris" ("comunhão nas coisas sagradas"), a matéria é canonicamente mais delicada. Em favor do Cardeal Sarah, diga-se que não é canonista, razão pela qual é escusável que não compreenda todas as dimensões do problema.

A bem da verdade, o próprio Cardeal Sarah reconhece que a regra geral não está revestida de tamanha rigidez, quando, mais adiante em sua entrevista, admite que um anglicano possa receber a comunhão em uma celebração católica, desde que devidamente disposto e em situações excepcionais. Mas nem todos os veículos de comunicação estão reproduzindo as palavras do Cardeal Sarah em sua íntegra. Por isso, vale a pena explicitar aqui as regras canônicas atualmente em vigor acerca da recepção do sacramento da Eucaristia por cristãos não-católicos.

O tema encontra-se previsto nos cânones 844, §3 e §4 do Código de Direito Canônico. Iniciemos pelo §3:

§ 3. Os ministros católicos administram licitamente os sacramentos da penitência, Eucaristia e unção dos enfermos aos membros das Igrejas orientais que não têm plena comunhão com a Igreja católica, se eles o pedirem espontaneamente e estiverem devidamente preparados; vale o mesmo para os membros de outras Igrejas que, a juízo da Sé Apostólica no que se refere aos sacramentos, se acham nas mesmas condições que as referidas Igrejas orientais.

Este primeiro grande grupo de fiéis cristãos que pode receber a Eucaristia das mãos de ministros católicos é composto por aqueles cristãos que pertencem às Igrejas orientais que não estão em comunhão com a Sé Romana (tanto Ortodoxos como os Ortodoxos pré-calcedonianos e Ortodoxos pré-efesianos). O §3 também estende esta disciplina a outras Igrejas que, a juízo da Santa Sé, no que se refere aos sacramentos, se acham nas mesmas condições que as referidas Igrejas orientais.

Exemplifiquemos falando concretamente de quais grupos são estes:

1) Igrejas ortodoxas: Patriarcado Ortodoxo Ecumênico de Constantinopla, Patriarcado Ortodoxo de Alexandria, Patriarcado Ortodoxo de Jerusalém, Patriarcado Ortodoxo de Antioquia,  Patriarcado Ortodoxo da Rússia e as demais Igrejas Ortodoxas (cuja data de separação formal da Igreja Católica Apostólica Romana é geralmente situada no ano de 1054);

2) Igrejas ortodoxas pré-calcedonianas: Igreja Copta, Igreja Etíope, Igreja da Eritreia, Igreja Armênia, Igreja Ortodoxa Siríaca e Igreja Ortodoxa Siríaca Malankara da Índia (cuja data de separação formal da Igreja Católica Apostólica Romana e das demais Igrejas Ortodoxas é geralmente situada no ano de 451, por não aceitarem declarações dogmáticas do Concílio de Calcedônia);

3) Igreja ortodoxa pré-efesiana: Igreja Assíria do Oriente (cuja data de separação formal da Igreja Católica Apostólica Romana e das demais Igrejas Ortodoxas é geralmente situada no ano de 431, por não aceitarem declarações dogmáticas do Concílio de Éfeso).
           
Quanto aos grupos a eles equiparados, uma decisão da Congregação para a Doutrina da Fé, de 3 de janeiro de 1987 (Prot. n. 795/68), afirma que, "dentre as Igrejas que estão na mesma situação das Igrejas Orientais mencionadas no cân. 844 § 3, incluem-se as Igrejas véterocatólicas na Europa e a Igreja Nacional Polonesa nos EUA".[1]

O que todos esses grupos de não-católicos acima descritos têm em comum, a permitir que comunguem das mãos de ministros católicos bastando que: 1) o peçam espontaneamente; 2) estejam devidamente preparados?

São comunidades cristãs que preservaram as principais verdades do depósito da fé, como, por exemplo, a crença em sete sacramentos, na presença real de Jesus Cristo na Eucaristia, no papel da Virgem Maria na economia salvífica, na instituição pelo Senhor de uma hierarquia para governar a Igreja. Por esse motivo, podem ser chamadas propriamente de "Igrejas", ainda que não em plena comunhão com a Sé Romana. Essas Igrejas, em regra, mantiveram sacerdócio válido, de modo que os sacramentos por elas celebrados são válidos (são verdadeiramente sacramentos).

Agora sigamos para o segundo grande grupo de fiéis cristãos não católicos, previsto no § 4 do cânone 844:

§ 4. Se houver perigo de morte ou, a juízo do Bispo diocesano ou da Conferência dos Bispos, urgir outra grave necessidade, os ministros católicos administram licitamente esses sacramentos também aos outros cristãos que não têm plena comunhão com a Igreja católica e que não possam procurar um ministro de sua comunidade e que o peçam espontaneamente, contanto que manifestem, quanto a esses sacramentos, a mesma fé católica e estejam devidamente dispostos.

Este grupo é composto por aqueles cristãos que não preservaram as principais verdades do depósito da fé, por exemplo, não crendo na instituição divina de sete sacramentos (alguns são assacramentais, outros creem que Jesus apenas instituiu alguns dos sete, como o batismo e a Eucaristia), não crendo na Eucaristia como presença real de Jesus Cristo, não crendo na instituição pelo Senhor de uma hierarquia para governar a Igreja, entre outros aspectos que são negados.

Nesta situação, encontra-se a grande maioria dos fiéis oriundos da Reforma Protestante, divididos em milhares de denominações diferentes espalhadas pelo mundo inteiro. Por não haverem mantido os aspectos mais essenciais do depósito da fé, tais comunidades não são propriamente chamadas de "Igrejas" pela Igreja Católica Apostólica Romana,  mas são simplesmente denominadas "comunidades eclesiais". Essas comunidades, em regra, não mantiveram sacerdócio válido, de modo que os sacramentos por elas celebrados são inválidos (não são verdadeiramente sacramentos).[2]

Por este motivo, os requisitos cumulativos para que um cristão pertencente a uma dessas comunidades eclesiais seja admitido à comunhão eucarística são bem mais rigorosos. São eles:

1) haver perigo de morte ou, a juízo do Bispo diocesano ou da Conferência dos Bispos, urgir outra grave necessidade;

2) não possam procurar um ministro de sua própria comunidade eclesial;

3) que o peçam espontaneamente;

4) manifestem, quanto a esses sacramentos, a mesma fé católica;

5) estejam devidamente dispostos.

Para os cristãos desse segundo grupo (oriundos da Reforma Protestante), não se exige apenas que peçam o sacramento espontaneamente e estejam devidamente preparados, como ocorria com os membros do primeiro grupo (os quais preservaram aspectos essenciais do depósito da fé e sacerdócio válido). Aqui, exige-se mais: também deve haver perigo de morte ou grave necessidade estabelecida pelo bispo diocesano ou pela Conferência Episcopal, uma dificuldade (moral ou física) de procurar um ministro de sua própria comunidade não-católica, bem como manifestar a fé católica quanto a esses sacramentos pedidos.

No caso da Eucaristia, a Igreja Católica Apostólica Romana presume que os membros dos grupos saídos da Reforma Protestante não creem na presença real de Jesus Cristo no pão e vinho consagrados. Por essa razão, somente um membro desse grupo que demonstrasse fé católica quanto a este ponto (ou seja, acreditasse efetivamente na presença real) poderia ser admitido, desde que cumprisse também as demais condições.

Esta, em breve síntese, a atual posição da Igreja Católica Apostólica Romana sobre a questão da recepção de sacramentos das mãos de ministros católicos por parte de cristãos não-católicos. Retomando a pergunta inicial, isso é sim possível, e as condições para que isso ocorra dependerão do grupo cristão a que pertence o fiel não-católico que pede os sacramentos aos ministros católicos.



[2] À exceção do batismo e do matrimônio, que podem ser válidos mesmo nessas comunidades eclesiais, por razões que não cabe agora explicar neste post.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

EXISTE "DIVÓRCIO" CATÓLICO? (2) - O PRIVILÉGIO PAULINO

No post anterior sobre o tema, analisamos a única hipótese de matrimônio sacramental válido que pode ser dissolvido: o matrimônio rato e não consumado.

Contudo, também dissemos que o matrimônio meramente natural (matrimônio entre não-batizados ou entre um batizado e um não-batizado), embora não seja sacramento, é verdadeiro matrimônio e, como tal, em regra é naturalmente indissolúvel. Mas, por não ser sacramento, sua indissolubilidade não está ornada da mesma firmeza presente no matrimônio sacramental, conforme ensina o cân. 1056[1]. Por isso, existe mais de uma hipótese em que o matrimônio natural válido pode ser dissolvido (repita-se: em se tratando de matrimônio sacramental válido, há uma única hipótese de dissolução - o matrimônio rato e não consumado).

Expliquemos a primeira hipótese de matrimônio natural válido que pode ser dissolvido: trata-se da situação abarcada pelo chamado privilégio paulino.

Em nome de um bem maior, qual seja, a preservação da fé[2] (e, obviamente, a salvação da alma), o matrimônio válido entre não-cristãos (que não é sacramento), naturalmente indissolúvel, pode excepcionalmente ser dissolvido para privilegiar a fé de um dos cônjuges que se converte ao cristianismo (não necessariamente ao catolicismo, basta que se torne cristão por meio de Igreja ou comunidade eclesial cristã não-católica que administre validamente o batismo). É o privilégio paulino, previsto diretamente pelo Apóstolo São Paulo (daí seu nome). Vejamos a passagem bíblica que lhe serve de fundamento (I Coríntios 7, 12-15):

"Aos outros, digo eu, não o Senhor: se um irmão desposou uma mulher pagã (sem a fé) e esta consente em morar com ele, não a repudie. Se uma mulher desposou um marido pagão e este consente em coabitar com ela, não repudie o marido. Porque o marido que não tem a fé é santificado por sua mulher; assim como a mulher que não tem a fé é santificada pelo marido que recebeu a fé. Do contrário, os vossos filhos seriam impuros quando, na realidade, são santos. Mas, se o pagão quer separar-se, que se separe; em tal caso, nem o irmão nem a irmã estão ligados. Deus vos chamou a viver em paz."

É justamente isso que a Igreja prevê no cânone 1.143 do Código de Direito Canônico:
"Cân. 1143 - § 1. O matrimônio celebrado entre dois não-batizados dissolve-se pelo privilégio paulino, em favor da fé da parte que recebeu o batismo, pelo próprio fato de esta parte contrair novo matrimônio, contanto que a parte não-batizada se afaste.
§ 2. Considera-se que a parte não-batizada se afasta, se não quer coabitar com a parte batizada, ou se não quer coabitar com ela pacificamente sem ofensa ao Criador, a não ser que esta, após receber o batismo, lhe tenha dado justo motivo para se afastar."

Portanto, busca-se tutelar a fé do convertido ao cristianismo nestas duas situações: 1) se o convertido for abandonado pelo cônjuge não-cristão; 2) mesmo não abandonando o convertido, o não-cristão não deseja conviver pacificamente sem ofensa ao Criador (ex: colocando obstáculos para a vivência da fé do cônjuge convertido)[3]. Nestes casos, esse matrimônio natural válido pode ser dissolvido em favor da fé do convertido, desde que o convertido, após receber o batismo, não tenha dado justo motivo para o não-cristão se afastar (por exemplo, o não-cristão pode legitimamente afastar-se caso seja traído pelo convertido). Vê-se que a iniciativa de abandonar o convertido ou de não desejar conviver pacificamente com ele sem ofensa ao Criador deve ser sempre da parte não-cristã, e não do convertido.

Esse matrimônio natural, por não estar dotado da mesma firmeza que o matrimônio sacramental, é dissolvido sem necessidade da intervenção do Papa, sobretudo pelo fato de que tal dissolução está prevista pelo próprio São Paulo como exceção à regra. No momento mesmo em que o cristão convertido casa-se de novo validamente, dissolve-se o vínculo natural anterior.

Mas atenção: como o matrimônio natural anterior foi válido, o novo matrimônio contraído em razão do privilégio paulino é, na verdade, o segundo matrimônio da pessoa. Essa pessoa terá sido casada duas vezes, de forma legítima e aceita pela Igreja.

Contudo, para que isso ocorra, é necessário antes perguntar ao cônjuge não-cristão que se afastou sem justo motivo duas coisas: 1) se não deseja também ele se batizar; 2) se ao menos não deseja conviver pacificamente com o cônjuge que se converteu ao cristianismo, sem ofensa ao Criador (cân. 1.144, §1)[4].

Esta interpelação é feita por autoridade do Ordinário local (em geral, o bispo) da parte convertida, devendo esse Ordinário conceder ao outro cônjuge, se este o pedir, um prazo para responder, mas avisando-o que, transcorrido inutilmente esse prazo, seu silêncio será interpretado como resposta negativa (cân. 1.145, §1). Se não for possível a interpelação feita pelo Ordinário, poderá ser feita particularmente pela parte convertida (cân. 1.145, §2), devendo, em ambos os casos, constar legitimamente no foro externo a interpelação e seu resultado (cân. 1.145, §3), sendo comum, por exemplo, que se faça constar por escrito a resposta da parte não-convertida ou que se certifique a sua negativa em responder.

A interpelação deve ser feita depois do batismo da parte convertida, mas o Ordinário local, por causa grave, pode permitir que a interpelação se faça antes do batismo e mesmo dispensar dela, antes ou depois do batismo, contanto que conste por um processo, ao menos sumário e extrajudicial, que a interpelação não pode ser feita ou que seria inútil (cân. 1.144, §2).

Se o cônjuge não-cristão também resolver se batizar, o matrimônio natural se torna, no momento do batismo, sacramental (pois, nesse caso, passará a ser um matrimônio entre dois cristãos). Havendo a consumação após o batismo de ambos, este matrimônio sacramental, além de rato, será consumado, não podendo ser dissolvido senão pela morte (obviamente, na rara hipótese em que o cônjuge não-cristão aceitar o batismo, se estiver afastado do cônjuge anteriormente convertido, o matrimônio será sacramental, mas, por ausência de consumação, poderia ser dissolvido pelo Romano Pontífice, como vimos no primeiro post).

Se o cônjuge não-cristão aceitar conviver pacificamente e sem ofensa ao Criador, então o cônjuge convertido não terá direito a casar-se pela segunda vez. Recorde-se que o privilégio paulino existe para salvaguardar a fé - se o outro cônjuge não é cristão, mas não prejudica a vida de fé do convertido, nem o abandona, não há razão para a dissolução do matrimônio.

Veja que o Ordinário local (em geral, o bispo) não dissolve o primeiro matrimônio natural válido. Ele simplesmente conduz (em regra) a devida interpelação ao cônjuge não-cristão, para certificar-se de que as condições estão presentes. Estando provado que estão presentes as condições para uso do privilégio paulino, o convertido tem direito a casar-se novamente. Mas será o próprio convertido que, ao casar-se de novo, dissolverá o vínculo anterior. No momento em que o cristão convertido casa-se de novo validamente, dissolve-se o vínculo natural anterior. E isso não decorre de nenhum poder episcopal de dissolver matrimônios válidos (pois não tem esse poder, só o Romano Pontífice, vigário de Cristo, o tem), mas sim da exceção diretamente manifestada pela autoridade apostólica de São Paulo.

O mais comum é que a parte convertida ao cristianismo (não necessariamente convertida ao catolicismo) use o privilégio paulino para casar-se pela segunda vez com um católico (cân. 1.146). Mas o Ordinário local, por causa grave, pode conceder que a parte batizada, usando do privilégio paulino, contraia novo matrimônio com parte não-católica, batizada ou não (cân. 1.147[5]), observando-se as prescrições sobre matrimônios mistos (católico casando-se com um cristão não-católico) e com disparidade de culto (católico casando-se com não-cristão).

A razão de se exigir causa grave é óbvia: se o convertido acabou de ter um matrimônio natural dissolvido em favor de sua fé, deve-se evitar que entre novamente em um matrimônio natural com um não-cristão (que não é sacramental), ou que entre em um matrimônio sacramental com um cristão de fé diferente (o que também tem potencial para trazer problemas práticos no cotidiano do casal).

Por fim, elencamos as situações em que o privilégio paulino pode ser invocado[6]:
1) um católico quer casar-se com um convertido ao catolicismo que não era previamente batizado (batizou-se ao tornar-se católico) e que, antes do batismo, contraíra casamento com um não-cristão;
2) um católico quer casar-se com um convertido ao cristianismo em Igreja ou comunidade eclesial cristã não-católica, e que, antes do batismo (batizou-se ao tornar-se cristão não-católico), contraíra casamento com um não-cristão;
3) um convertido ao catolicismo que não era previamente batizado (batizou-se ao tornar-se católico) e que, antes do batismo, contraíra casamento com um não-cristão, quer casar-se com um cristão não-católico ou com um não-cristão (cân. 1.147).

No próximo post, continuaremos tratando de outras hipóteses de matrimônio natural válido que pode ser dissolvido.


[1] Cân. 1056 - As propriedades essenciais do matrimônio são a unidade e a indissolubilidade, que, no matrimônio cristão, recebem firmeza especial em virtude do sacramento.
[2] Cân. 1150 - Em caso de dúvida, o privilégio da fé goza do favor do direito.
[3] Podem ser vistos como ofensa ao Criador, para efeitos deste cânone: "pese a querer cohabitar, lo hace de modo que implica algo contrario a la recta ordenación del matrimonio, es decir, no lo hace sine contumelia Creatoris). Esta última puede consistir en atentación contra la libertad del bautizado para la práctica de la religión; inducción al pecado; vida conyugal deshonesta; oposición a la educación cristiana de los hijos; ataques a la fe del convertido; poligamia; maltratos; y otras conductas similares."
[4] Cân. 1144 - § 1. Para que a parte batizada contraia validamente novo matrimônio, deve-se sempre interpelar a parte não-batizada:
1º se também ela quer receber o batismo;
2º se, pelo menos, quer coabitar pacificamente com a parte batizada, sem ofensa ao Criador.
[5] Cân. 1147 - Todavia, o Ordinário local, por causa grave, pode conceder que a parte batizada, usando do privilégio paulino, contraia novo matrimônio com parte nãocatólica, batizada ou não, observando-se também as prescrições dos cânones sobre matrimônios mistos.
[6] Extraído de STUART, Eileen. Dissolution and Annulment of Marriage by the Catholic Church. Sydney: The Federation Press, 1994. p. 106.