terça-feira, 22 de julho de 2014

PODE O FIEL AUTORIZAR O SACERDOTE A REVELAR O TEOR DE SUA CONFISSÃO? (I)

Como sempre faço, respondo desde agora a pergunta: sim, o fiel pode autorizar o sacerdote a revelar o teor de sua confissão.

O caso que analisamos hoje é incomum (obviamente, é também trágico, pois se trata de suposto abuso sexual de um menor por um leigo dentro do ambiente da Igreja): uma menina norte-americana do Estado de Louisiana, aos 14 anos de idade, confessa a um sacerdote que estava sofrendo abuso sexual de um membro da paróquia agora já falecido. A menina, representada por seus pais, vai ao Judiciário buscar indenização civil pelo abuso sofrido, tanto contra o espólio do suposto abusador, como também contra o sacerdote (por negligência deste no dever de relatar os fatos à autoridade estatal competente) e contra a diocese (responsabilidade desta por ato de seu preposto, a saber, o padre, que deixou de informar a autoridade civil).

Neste momento, o sacerdote é chamado a dar o seu depoimento para confirmar que a menina de fato confessou-se com ele á época e que o teor de tal confissão versava sobre abuso sexual sofrido pela menina por parte de um membro da paróquia.

O sacerdote, então, alega que não está autorizado pelo direito canônico a confirmar se a menina confessou e nem o teor desta confissão, uma vez que o sigilo da confissão o impede, sob pena de ser excomungado automaticamente (excomunhão latae sententiae prevista no cân. 1388, 1). A diocese afirma o mesmo.

O tribunal assevera que o sacerdote poderia depor sobre os fatos ocorridos durante a confissão, uma vez que a protegida pelo sigilo, que era a menina, já o autorizou a fazê-lo. Contudo, se não depusesse e preferisse ficar calado, poderia incorrer no que o direito norte-americano chama de contempt of court, ou seja, a possibilidade de ser preso por ofender a dignidade da Corte ao não cumprir ordem judicial. No direito americano, somente o réu em processo criminal pode ficar calado – o réu em processo civil (é o caso do padre) deve depor e obriga-se a dizer a verdade, sob juramento (se mentir, poderá cometer o crime de perjúrio).

Em primeiro lugar, deve-se louvar o zelo de sacerdotes que demonstrem sua disposição para serem presos caso sejam obrigados a violar o sigilo sacramental. Realmente, se os sacerdotes não tivessem este ânimo de sofrer atrozes penas para não trair sua missão, a confissão como sacramento rapidamente cairia em descrédito, pois quem contaria seus pecados a um homem que, embora sendo instrumento de Deus, estivesse disposto a publicá-los aos quatro ventos no dia seguinte?

Por isso mesmo a Igreja pune com sua pena mais severa (a excomunhão, e na modalidade latae sententiae ou automática) o sacerdote que viola tal segredo, sendo o levantamento de tal excomunhão reservado à Sé Apostólica. Ou seja, grau máximo de severidade no tratamento da questão. Em tempos idos, como atesta o IV Concílio do Latrão (1215), o sacerdote que revelasse o segredo de confissão não somente seria suspenso do exercício das sagradas ordens, como seria compulsoriamente recolhido a um mosteiro de clausura para fazer penitência perpétua. Duro, mas indica a importância que a Igreja dava e dá ao sigilo sacramental.

O sigilo sacramental é uma garantia em favor do fiel penitente, ou seja, de que tudo que o fiel narrou na confissão não será revelado sob hipótese alguma. Porém, quando o próprio fiel autoriza o sacerdote a divulgar o conteúdo da confissão, é o próprio fiel a permitir que a história do que se passou no confessionário venha a público.

Neste sentido é a lição da Suma Teológica sobre o tema, no Suplemento post mortem elaborado a partir dos Comentários de S. Tomás de Aquino ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo (Scriptum Super Quarto Libro Sententiarum, Distinctio XXI, Quaestio III, Art. II et III[1]). Por ser mais acessível o texto da Suma Teológica, passo a citá-lo:

"Questão 11 - Artigo 4.
Art. 4 ─ Se com licença do penitente pode o sacerdote revelar a outrem o pecado ouvido sob o sigilo da confissão.

O quarto discute-se assim. ─ Parece que com licença do penitente não pode o sacerdote revelar a outrem o ouvido sob o sigilo da confissão.

1. ─ Pois, o que não pode o superior não pede o inferior. Ora, o Papa a ninguém poderá dar licença de revelar a outrem o pecado ouvido em confissão. Logo, nem o penitente poderia dar essa licença.
2. Demais. ─ O instituído em vista do bem comum não pode ser mudado por arbítrio de um particular. Ora, o sigilo da confissão foi instituído para o bem de toda a Igreja,a fim de que os homens se acerquem da confissão com mais confiança. Logo, o penitente não pode dar ao sacerdote licença para revelar a sua confissão.
3. Demais. ─ Se ao sacerdote pudesse ser dada essa licença, seria dada aos maus sacerdotes para encobrir a malícia, pois poderiam alegar que licença lhes foi dada, para assim pecarem impunemente. O que é inadmissível. E portanto, parece que não podem ter tal licença do penitente.
4. Demais. ─ Quem recebesse a revelação dessa confissão não estaria obrigado ao segredo. E assim poderia tornar público um pecado já perdoado. O que é inadmissível. Logo, não pode o sacerdote receber essa licença.

Mas, em contrário. ─ Com o consentimento do penitente, o superior pode mandar um pecador a um sacerdote inferior, levando-lhe carta. Logo, por vontade do penitente pode o pecado ser revelado a outrem.

2. Demais. ─ Quem pode agir por si também o pode por outrem. Ora, o penitente pode revelar o seu pecado, que por si cometeu, a outrem. Logo, também o pode fazer pelo sacerdote.

SOLUÇÃO. ─ Duas são as razões por que está o sacerdote obrigado ao sigilo: primeiro e principalmente, porque essa ocultação é da essência do sacramento, pois, o sacerdote conhece os pecados como Deus, cujas vezes faz na confissão; segundo, para evitar escândalo. Mas, o penitente pode fazer o sacerdote conhecer também como homem o que só como Deus o sabia; e isso, dando-lhe licença de revelar a confissão. Contudo, o sacerdote deve, ao revelar, evitar o escândalo de ser tido como infrator do sigilo da confissão.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. ─ O Papa não pode dar ao sacerdote licença de revelar a confissão, porque não pode fazê-lo conhecedor dela como homem. Mas isso o pode o penitente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ No caso não fica eliminado o instituído para o bem comum, pois não há quebra do sigilo da confissão quando se diz o que de outro modo foi sabido.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Por aí não se confere impunidade aos maus sacerdotes, pois lhes incumbe provar, se acusados, que revelaram por licença do penitente.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Quem chega ao conhecimento do pecado, mediante o sacerdote e por vontade do penitente, participa de algum modo do ato do sacerdote. Por isso se dá com ele o mesmo que com o intérprete; salvo se o pecador quiser que absoluta e livremente saiba da confissão."

Todas as 20 obras por mim consultadas admitem que o penitente autorize o confessor a falar, seguindo a lição do Aquinate - o penitente pode liberar o confessor do sigilo sacramental, desde que o penitente o faça de modo expresso para evitar qualquer aparência escandalosa de que o sacerdote estaria a revelar um segredo de confissão. Assim é em: S. Boaventura[2], Capreolus[3], Bañez[4], Salmanticenses[5], Billuart[6], S. Afonso de Ligório[7], Konings[8], Marc e Gestermann[9], Merkelbach[10], Noldin-Schmitt[11], Peeters[12], Prümmer[13], Regatillo[14], Tanquerey[15], Vermeersch[16], Wouters[17], Bucceroni[18], Aertnys e Damen[19] e Davis[20].

[Continua em próximo post]




[1] Scriptum super sententiis Magistri Petri Lombardi. Parisiis: P. Lethielleux, 1947. p. 1.071-1.075.
[2] S. Bonaventurae. Opera Omnia - Commentaria in Quatuor Libros Sententiarum Magistri Petri Lombardi: In Quartum Librum Sententiarum. T. IV. Florença: Quaracchi, 1889. p. 568. Eis a conclusão de S. Boaventura: "Conclusio: Confitens potest licentiare confessarium, ut peccata revelet, in casu, in quo non timetur scandalum."
[3] CAPREOLI, Johannis. Defensiones Theologiae Divi Thomae Aquinatis. Tomus VI. Turonibus: Alfred Cattier, 1906. p. 425: "Quarta conclusio est quod sacerdos de voluntate confitentis potest revelare peccatum sibi confessum." Ex quibus potest sit argui: Cessante causa, cessat effectus. Sed confitens dans licentiam sacerdoti revelandi suam confessionem, tollit causam celationis. Ergo et effectum."
[4] BAÑEZ, Domingo. Comentarios ineditos a la tercera parte de Santo Tomas. De Sacramentis. Tomo II. Segunda parte. Madrid: Biblioteca de Teólogos Españoles, 1953. p. 757: "Utrum sacerdos possit revelare confessionem de licentia poenitentis? Conclusio est affirmativa. Ratio est quia quando homo qui confessus est concedit talem facultatem, jam facit ut confessor sciat talem secretum ut homo et non solum loco Dei."
[5] Cursus Theologicus, n. 58. Tomus Vigesimus. Parisiis: Victor Palmé, 1883. p. 550 e ss.
[6] BILLUART, Caroli Renati. Summa Sancti Thomae hodiernis academiarum moribus accomodata sive Cursus Theologiae juxta mentem Divi Thomae. Tomus IX. Parisiis: Victorem Lecoffre, 1886. 448-450.
[7] LIGORIO, Alphonsi Mariae de. Theologia Moralis. Tomus Tertius. Graz: Akademische Druck U., 1954. n. 651. p. 672-673.
[8] KONINGS, A. Theologia Moralis. V. II. 7 ed. Nova Iorque: Benziger Fratres, 1890. n. 1489, IV. p. 189.
[9] MARC, Cl.; GESTERMANN, X. Institutiones Morales Alphonsianae. Tomus Secundus. 19. ed. Lutetiae Parisiorum: Emmanuelis Vitte, 1934. n. 1866, 7º. p. 401.
[10] MERKELBACH, Benedictus Henricus. Summa Theologiae Moralis. T. III: De Sacramentis. 11 ed. Brugis: Desclée de Brouwer, 1962. n. 622. p. 584.
[11] NOLDIN, H.; SCHMITT, A. Summa Theologiae Moralis. V. III: De Sacramentis. Oeniponte: Feliciani Rauch, 1960. 32 ed. n. 409. p. 351-352.
[12] PEETERS, Hermes. Manuale Theologiae Moralis. V. III: Pars Sacramentaria. Roma: Marietti, 1963. p. 166.
[13] PRÜMMER, Dominicus. Manuale Theologiae Moralis. Tomus III. 12. ed. Friburgi Brisgoviae: Herder, 1955. p. 317.
[14] REGATILLO, Eduardo. Theologiae Moralis Summa. V. III. Matriti: BAC, 1954. n. 492. p. 365-366.
[15] TANQUEREY, A. Synopsis Theologiae Moralis et Pastoralis. Tomus Primus: De Paenitentia, De Matrimonio et Ordine. 7. ed. Romae: Desclée, 1920. n. 500. p. 300.
[16] VERMEERSCH, Arthurus. Theologiae Moralis: principia, responsa, consilia. Tomus III. De personis, de sacramentis, de Ecclesiae praeceptis et censuris. Romae: Charles Beyaert, 1923. n. 513, p. 413-414.
[17] WOUTERS, Ludovico. Manuale Theologiae Moralis. Tomus II. Brugis: Carolus Beyaert, 1933. n. 433. p. 339.
[18] BUCCERONI, Ianuario. Institutiones Theologiae Moralis. V. III. 6. ed. Romae: Typographia Pontificia in Instituto Pii IX, 1915. n. 843. p. 533-534.
[19] AERTNYS, I.; DAMEN, C. Theologia Moralis. Tomus II. 17. ed. Romae: Marietti, 1958. p. 412-414.
[20] DAVIS, Henry. Moral and Pastoral Theology. V. 3. 8. ed. London, New York: Sheed and Ward, 1959. p. 318.

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