quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O CASO DO BISPO CATÓLICO CASADO E COM 7 FILHOS - A VÁLIDA ADMINISTRAÇÃO DO SACRAMENTO DA ORDEM - 2

Aplicação prática da doutrina: o caso de D. Salomão Barbosa Ferraz, bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo

Para melhor compreensão da doutrina exposta no primeiro post sobre o tema de que o sacramento da Ordem pode ser validamente conferido mesmo por um bispo que não esteja em comunhão com a Igreja Católica Apostólica Romana, trago como exemplo o peculiar e incomum caso do bispo brasileiro D. Salomão Barbosa Ferraz, já falecido (1880-1969), que foi bispo titular de Eleuterna (título este conferido pelo Papa São João XXIII), e que atuou junto à Arquidiocese de São Paulo.

D. Salomão Ferraz foi um cidadão brasileiro, oriundo do protestantismo, que logrou ser ordenado bispo por D. Carlos Duarte Costa, fundador da Igreja Católica Apostólica Brasileira. D. Carlos Duarte foi válida e licitamente ordenado bispo na Igreja Católica Apostólica Romana por D. Sebastião Leme, então arcebispo coadjutor de São Sebastião do Rio de Janeiro, no ano de 1924. Foi bispo de Botucatu, em São Paulo. Contudo, pela falta de ortodoxia de suas opiniões (como as críticas à infalibilidade papal, a defesa da possibilidade do divórcio e do fim do celibato sacerdotal), veio a ser excomungado em 6 de julho de 1945, e fundou no mesmo dia a Igreja Católica Apostólica Brasileira, até hoje existente.

Pouco após ser excomungado, na Festa da Assunção da Virgem Maria de 1945 (15.08.1945), D. Carlos Duarte ordenou Salomão Barbosa Ferraz para o episcopado. Salomão era um homem casado e pai de sete filhos, tendo sido pastor protestante.

Ocorre que Salomão Ferraz, anos após sua irregular ordenação episcopal pelo bispo excomungado D. Carlos Duarte Costa, manifestou seu desejo de entrar em comunhão com a Igreja Católica Apostólica Romana. Seu pleito não só foi atendido, como ele foi recebido na Igreja pelas mãos do então cardeal Arcebispo de São Paulo sem que fosse reordenado (nem mesmo foi ordenado sob condição), apesar de continuar casado e pai de sete filhos. No dia 8 de dezembro de 1959 (Festa da Imaculada Conceição), às 8:30h, na Capela do Menino Jesus, D. Salomão Ferraz, perante S. Em. Revma. Cardeal D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta (cardeal arcebispo de São Paulo), fez voto de profissão de fé católica e assinou o respectivo termo de compromisso. Nessa mesma igreja, às 9:00h, D. Salomão celebrou a primeira missa como bispo da Igreja Católica Apostólica Romana, acolitado pelo Pe. Nicolau Rossetti S. J. e Monsenhor Costa Neves. Às 16:00h, o novo bispo católico romano foi recebido pelo Cardeal Motta no palácio Pio XII.

Sua recepção na condição de bispo e exercendo o ministério episcopal deu-se por expressa permissão do Papa São João XXIII (que o fez bispo titular de Eleuterna em 10 de maio de 1963), a quem teve a oportunidade de encontrar uma vez em Roma, bem como tomou parte no Concílio do Vaticano II como padre conciliar[1], morrendo em plena comunhão com a Igreja Católica Apostólica Romana.[2] Seu nome consta como bispo católico romano regular nos principais repositórios de informações sobre bispos católicos.[3] Seguem abaixo algumas fotos suas como bispo católico romano, de modo a corroborar a veracidade das informações:


D. Salomão, junto a bispos brasileiros, na Praça de São Pedro, durante o Concílio Vaticano II.
D. Salomão é o terceiro a contar da direita.
 
 
 
D. Salomão sendo recebido pelo Cardeal Carmelo Motta, arcebispo de São Paulo.
D. Salomão é o bispo sentado à direita.

 
Portanto, esta curiosa situação de um homem casado e pai de sete filhos, que foi aceito como bispo na Igreja Católica Apostólica Romana sem a necessidade de nova ordenação, apesar de ordenado irregularmente e sem mandato pontifício por um bispo excomungado que fundou uma dissidência da Igreja Católica, demonstra a doutrina da Igreja acerca da validade de ordenações feitas fora da comunhão romana, desde que o consagrante seja bispo dotado de sucessão apostólica, empregue a matéria e forma corretas e tenha intenção mínima, nos termos acima já explicados (ainda que o bispo ordenante seja excomungado, cismático ou herege). Não fosse esta a doutrina tradicional da Igreja sobre a questão, Salomão Ferraz jamais poderia ter sido recebido como bispo sem nova ordenação na Igreja Católica Apostólica Romana.

Post Scriptum: Para os que podem ter ficado pensando "mas como pode um homem casado ser aceito como bispo, isto não contraria a disciplina eclesiástica tanto do Oriente como do Ocidente?", lembro apenas de um fato: D. Salomão Ferraz foi recebido na Igreja Católica Apostólica Romana com cerca de 80 anos de idade, idade em que, presumidamente, já mantinha a continência clerical exigida dos bispos.

A questão da exigência histórica de continência dos clérigos em ordens maiores na Igreja Latina, inclusive daqueles que eram casados, é um assunto interessantíssimo e que merece um post especial. Apenas adianto que, historicamente (no primeiro milênio), houve diversos bispos e mesmo Papas legitimamente casados e com filhos. A diferença estava em que, a partir da ordenação, tais homens, embora casados, já não podiam manter vida sexual ativa com suas esposas. Ou seja, os filhos que tiveram foram anteriores à ordenação.



[1] A informação de que D. Salomão Ferraz foi padre conciliar no Concílio do Vaticano II encontra-se também na tese de doutorado em História Social de José Oscar Beozzo, defendida perante a USP, intitulada "Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II" e baseada nas atas do Concílio. Eis a relação das intervenções de D. Salomão no Concílio: 224 - Dom Salomão Ferraz - Vat. II: Io , 2°, 3° c 4° períodos [11 intervenções] AS I/1, 581-83 - IX; AS I/3, 328; AS II/I,662; AS II/3, 459-60; AS II/4, 853-55; AS II/5, 890-91; AS III/4, 730; AS III/4, 894-97; AS III/7, 844; AS III/8, 992-93; AS IV/2, 153-53 (BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia – 1959-1965. 2001. 436 f. Tese. (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. p. 203).
[2] O necrologio publicado nos atos oficiais da Sé Apostólica de 1969 noticia a morte de D. Salomão Ferraz, bispo titular de Eleuterna (Monsig. Ferraz Salomao, Vescovo tit. di Eleuterna). Acta Apostolicae Sedis - Commentarium Officiale - Vol. LXI - 1969 - pág. 360.
[3] Basta buscar o nome de Salomão Barbosa Ferraz em sítios eletrônicos que consolidam os dados de bispos ordenados, como http://www.catholic-hierarchy.org/bishop/bferraz.html e http://www.gcatholic.org/, para verificar a veracidade da informação aqui veiculada.

4 comentários:

  1. Parabéns pelo artigo. Denota que buscas, dentro da espiritualidade católica, manter no crivo racional, um jeito inteligente de escrever, digno de um bom estudioso de leis. Sobre Dom Salomão Ferraz, caso tenha interesse, há muito material na sede da Ordem religiosa fundada por ele, no ano de 1928. Essa congregação de padres missionários andrelinos, ainda existe e tem 4 paroquias em São Paulo, onde alguns padres são casados. Não tem nenhum vínculo com igrejas católicas brasileiras ou qualquer outras Igreja de seguimento nacional. A congregação permanece Católica Apostólica Romana, com apoio de alguns bispos, e receberam do Papa Emérito Bento XVI uma carta (em latim) em 2005, solicitando que aguardasse o momento oportuno para estarem em plena comunhão com a Igreja, assim como sempre quisera o fundador (d. Salomão) e seus sucessores na Venerável Ordem Católica de Santo André Apóstolo (OSA). A sede da congregação fica em São Paulo (Capital), junto a Paróquia Santo Antônio, na Rua Elias Monteiro Cardoso, 120, Vila Clara. Atual superior é monsenhor Ulysses Moreira Araújo, que era do clero diocesano, mas a convite de d. Salomão, ingressou na referida ordem religiosa e já completou sessenta anos de vida presbiteral, dos quais trinta anos são dedicados a referida congregação dos missionários andrelinos (OSA).

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Prezado(a),
      Fico contente que tenha gostado da postagem. Eu sabia que a Ordem de Santo André havia sido fundada por D. Salomão. Fico feliz que haja conversações com a Santa Sé para a regularização canônica dos clérigos da Ordem. Como o fundador, D. Salomão, faleceu em plena comunhão com a Sé Romana, não vejo que a regularização seja algo impossível, especialmente em relação aso clérigos que tenham sido ordenados diretamente por D. Salomão, cuja consagração episcopal foi reputada válida pela Santa Sé. Ademais, após o Motu Proprio "Anglicanorum Coetibus", em que reverendos anglicanos casados foram aceitos na Igreja Católica Apostólica Romana sem que tivessem de deixar o uso do matrimônio, o fato de possuírem clero casado não é um obstáculo intransponível. Após o Concílio do Vaticano II, a Igreja Latina admite os diáconos permanentes casados, clérigos casados que mantêm o uso do matrimônio. Entre os católicos orientais, sempre foi possível ter diáconos e presbíteros casados mantendo o uso do matrimônio. Recentemente, o Papa Francisco estendeu inclusive a possibilidade de os bispos católicos orientais ordenarem homens casados na diáspora, isto é, fora dos territórios tradicionalmente ocupados por estas Igrejas orientais (Oriente Médio, Norte da África, Índia e Europa Oriental). Por exemplo, hoje, o bispo católico maronita do Brasil, se quiser, pode ordenar um homem casado ao sacerdócio, sem ter de pedir dispensa à Santa Sé para isso. Mesmo antes do Anglicanorum Coetibus, alguns ministros protestantes eram recebidos como diáconos ou presbíteros católicos mantendo suas esposas e o uso do matrimônio. E, ao que parece, o superior eclesiástico da Ordem de Santo André é um homem celibatário. Ainda que não o fosse, poderia ser recebido como presbítero mitrado casado, como ocorre entre vários superiores dos Ordinariados do Anglicanorum Coetibus, em que o superior é um homem casado, com uso do matrimônio, mas que possui a prerrogativa de utilização das insígnias episcopais. Enfim, caminhos canônicos há. Se D. Salomão, casado e pai de sete filhos, foi regularizado, não é impossível. Faço votos de que as conversas com a Sé Romana cheguem a bom termo.

      Excluir
  2. Ótima síntese sobre esse caso. A melhor que já vi.

    ResponderExcluir
  3. Textp muito intetessante. Não conhecia a biografia de Dom Salomão.

    ResponderExcluir