domingo, 29 de março de 2015

PODE-SE CELEBRAR O MATRIMÔNIO CATÓLICO FORA DO ESPAÇO DA IGREJA?

Uma das perguntas mais frequentes quando casais estão se preparando para o matrimônio diz respeito à possibilidade de se celebrar um matrimônio católico fora do espaço de uma igreja. Alguns noivos gostariam de casar-se perante um ministro religioso católico, mas na praia, na casa de festa, em sítios ou fazendas, há inclusive os que desejariam casar-se na Disneylândia (não é piada, a Disneylândia possui um espaço reservado para casamentos e, ao que parece, o local é bem concorrido).  

Qualquer visita a blogs de noivas, de casamento ou de cerimonialistas de casamento mostra que esta é uma pergunta recorrente. Há casas de festa que, inclusive, anunciam uma promoção: contrate a festa, e o "celebrante" é dado de brinde, para fazer o casamento dentro da própria casa de festa. E então, isso é possível?

RESPOSTA: Não, em regra isso não é possível. 

O cânone 1.118, § 1 do Código de Direito Canônico estabelece: 

Cân. 1118 — § 1. O matrimônio entre católicos ou entre uma parte católica e outra não católica mas batizada celebre-se na igreja paroquial; pode celebrar-se noutra igreja ou oratório com licença do Ordinário ou do pároco.

Portanto, a regra geral é de que não é possível aos católicos casar-se fora de lugares sagrados. Há uma importante razão espiritual para isso: o matrimônio é um vínculo natural que, entre os cristãos (sejam eles católicos ou não), foi elevado à dignidade de sacramento por Cristo Senhor (cân. 1.055). Portanto, a graça divina não anula a natureza, mas a eleva a uma ordem sobrenatural. Dada a natureza também sagrada deste vínculo, é prudente, conveniente e oportuno que sua constituição se dê dentro de um recinto sagrado, de maneira a expressar de forma mais plena o caráter sacro de tal instituição. Ou, caso se prefira colocar deste modo, é mais consentâneo com a teologia do sacramento que este seja celebrado no lugar sagrado, sobretudo pela existência aí do Ssmo. Sacramento, presença substancial de Nosso Senhor nos tabernáculos de nossas igrejas.

Dito isto, atente-se para o fato de que dissemos apenas que, em regra, isso não é possível. Mas a regra admite exceção, prevista no cân. 1.118, § 2:

Cân. 1118 — § 2. O Ordinário do lugar pode permitir que o matrimônio se celebre noutro lugar conveniente.  

Primeiramente, deve-se lembrar que esta exceção não configura um direito do fiel a casar-se fora do espaço da igreja. O Ordinário (em geral, o bispo diocesano) não pode ser compelido a permitir um matrimônio católico fora de uma igreja. É uma faculdade que o direito canônico confere ao Ordinário, que poderá exercê-la ou não.

Em segundo lugar, na prática, é bastante incomum e raro que o Ordinário conceda esta permissão, pelas razões teológicas acima expostas. Por isso, deve haver uma justificativa séria o suficiente, por parte dos nubentes, para que o Ordinário conceda a permissão para casar-se fora do espaço da igreja. Meras questões logísticas ("é mais prático casar-se na casa de festa") ou de gosto pessoal dos nubentes ("amamos a praia ou o campo"; "queremos nos casar na Disneylândia pois foi lá que nos conhecemos") em geral não são suficientes para que o bispo dê esta permissão. 

Tentemos esboçar um exemplo de questão séria: os nubentes moram em local distante e isolado, que conta com uma única igreja católica. Porém, a igreja do local recentemente sofreu um incêndio e não está podendo ser utilizada antes de uma reforma. Neste caso, há uma chance considerável de que o bispo permita o casamento fora da igreja. Mas, obviamente, este não é o caso da maioria dos noivos que deseja se casar fora do espaço da igreja. 

Há ainda outra exceção, prevista no cân. 1.118, § 3: 

Cân. 1118 — § 3. O matrimônio entre uma parte católica e outra não batizada pode celebrar-se na igreja ou noutro local conveniente.   

Se o católico irá casar-se com uma pessoa que nem sequer é cristã (seja católica ou cristã de outra igreja ou comunidade cristã), por exemplo, com um judeu, um muçulmano, um budista, então desaparece a razão teológica que indicamos de elevação do matrimônio, um vínculo natural, ao nível sobrenatural de sacramento. O casamento entre um católico e um não-cristão, embora possa ser válido como instituição natural, não é sacramento, e, por isso, não há uma razão teológica suficientemente forte que imponha a realização deste casamento dentro do espaço da igreja, podendo os noivos optar livremente por casar-se fora dela. Mas, neste caso, deverão obter permissão do bispo não quanto ao local do casamento, mas sim para a validade do próprio casamento, visto que se trata de um casamento com disparidade de culto, situação em que a Igreja exige uma série de condições para dispensar o fiel católico para casar-se com um não batizado, de modo a tutelar a fé da parte católica e dos filhos que nascerem deste casamento.

Eis aí a resposta para a pergunta.


sexta-feira, 6 de março de 2015

CELIBATO, CONTINÊNCIA E CASTIDADE

Celibato, continência e castidade... Três conceitos que facilmente são baralhados na linguagem quotidiana, tomados muitas vezes como sinônimos, mas que são, efetivamente, diferentes. Sua compreensão adequada é imprescindível para o direito canônico, pois, para cada uma destas figuras, existem consequências e efeitos jurídico-canônicos diversos, seja em relação à vida matrimonial, religiosa ou clerical. É impossível compreender retamente, por exemplo, a questão da possibilidade de homens casados se tornarem presbíteros (padres), ou mesmo o tema da validade do matrimônio não consumado, se a diferença entre estes conceitos não for estabelecida.

Para fazer esta distinção, valemo-nos, com adaptações, da excelente explicação que o canonista estadunidense Edward Peters dá sobre o tema, a qual tem o mérito de ser concisa e clara (o original em inglês pode ser consultado aqui).

Celibato é um estado de vida decorrente de uma escolha deliberada de não se casar. Não se configura pelo simples fato de estar solteiro por circunstâncias quaisquer não livremente escolhidas. É, na verdade, o estado de vida de um solteiro qualificado pela decisão livre de não se casar. Um jovem que deseja encontrar uma namorada para casar-se, enquanto não a encontra, ou, encontrando-a, enquanto ainda a namora, não é propriamente um celibatário, pois não escolheu deliberadamente o estado de vida de não casar-se, tanto é que busca encontrar alguém para sua esposa. A pessoa que, querendo casar-se, não encontra alguém que queira casar-se com ela, não é propriamente celibatária, pois tal decisão não é deliberada livremente, mas uma imposição das circunstâncias da vida.

Quando não há uma escolha deliberada por não se casar, é preferível dizer que a pessoa está ou é solteira, mas não que é celibatária. Solteiras são, por exemplo, as crianças (que poderão ou não desejar casar-se quando adultas), as pessoas que esperam casar-se ou se preparam para o casamento, a pessoa que ficou viúva após a morte do cônjuge e que aceitaria casar-se novamente.

A decisão pelo celibato (portanto, escolha livre e deliberada por este estado de vida) não necessita sempre ser por motivos nobres ou altruístas. Celibatário é tanto o sacerdote e o religioso que optam por este estilo de vida de modo a melhor se consagrar ao serviço de Deus e da Igreja como a pessoa que não deseja casar-se para não ter responsabilidades com outras pessoas ou para que não seja importunado em seu estilo de vida, bem como as pessoas viúvas que preferem fechar-se a um novo casamento após a morte do cônjuge ou aqueles que não se casam para se dedicar aos cuidados de parentes idosos ou enfermos. O essencial para configuração do celibato é a escolha deliberada por um estilo de vida que exclui o casamento por parte de uma pessoa que, se quisesse, poderia livremente optar pelo casamento (seja lá qual for a finalidade que se almeja com esta exclusão matrimonial). 

Continência, por sua vez, é a escolha deliberada por não praticar atos sexuais. A moral cristã exige a continência de todos aqueles que não se encontram casados, pois somente dentro do casamento é moralmente legítimo a prática de atos sexuais. Celibatária ou solteira, toda e qualquer pessoa que não seja casada, seja por opção ou não, é chamada à continência sexual, seja o rapaz que está namorando, a moça solteira, o padre, a freira, o monge, os viúvos etc. Historicamente, a Igreja Latina (a Igreja Católica do Ocidente, que segue o rito romano) também exigia do clero casado tal continência, apesar de serem casados, mas esta peculiar situação será tratada em outro post.

Para distinguir bem o celibato da continência, podemos formular um exemplo: um padre celibatário opta por não se casar e o próprio direito canônico o impede de contrair matrimônio sem a devida dispensa a partir de sua ordenação diaconal. Embora seja celibatário, pode acontecer de este padre nem sempre ser continente, pois pode vir, ocasionalmente, a praticar atos sexuais fora de um matrimônio (hipótese em que, obviamente, peca). Mas veja-se que o pecado não está propriamente na violação do celibato, mas sim da continência - o fato de ele praticar ato sexual com determinada pessoa não quer dizer necessariamente que ele deseje casar-se com ela ou abandonar o estado de vida celibatário. Significa apenas que o clérigo em questão foi incontinente, ou seja, não seguiu a continência sexual que a moral cristã exige de toda e qualquer pessoa não casada (seja clérigo celibatário, religioso ou leigo). A obrigação de manter-se continente, abstendo-se de atos sexuais, abarca a todos os cristão não casados, não somente a clérigos celibatários e religiosos.

Quanto aos casados, podem, por razões várias (razões espirituais, planejamento familiar natural, necessidade de viagem por período longo etc.), abster-se durante certos períodos da prática sexual, por livre decisão do casal. Em alguns casos, podem decidir-se (de comum acordo) por não manter mais relações sexuais. O exemplo máximo desta continência entre casados é o matrimônio entre a Virgem Ssma. e São José. Veja que ambos eram verdadeiramente e validamente casados (não eram celibatários), porém foram perfeitamente continentes dentro do matrimônio. Isto nos prova que ser celibatário e ser continente são coisas distintas. Obviamente, todo celibatário deve ser também continente, em razão do fato de que não se pode casar (e o cristão que não se casa, seja ele quem for, não deve praticar atos sexuais fora do casamento). Já o solteiro também deve ser continente, mas, se vier a se casar, poderá cessar esta continência. Os casados podem ser continentes por opção (não se lhes é exigida tal continência), desde que de comum acordo.

Por fim, a castidade é uma virtude por meio da qual a pessoa faz uso de sua faculdade sexual de modo adequado a seu estado de vida. Um cristão não casado (solteiro ou celibatário, não importa) será casto ao exercer a continência, isto é, ao não praticar atos sexuais precisamente por não ser casado, pois o seu estado de vida (não casado) assim o exige. Já a castidade entre casados não pode ser confundida com abstinência sexual. Os casados são castos tanto mantendo a prática sexual retamente ordenada entre si, como optando por abstinências periódicas ou por continência por prazo indeterminado (desde que de comum acordo). São formas distintas de se viver a castidade entre casados, mas jamais se pode dizer que a prática sexual retamente ordenada entre casados seja pecaminosa ou contrária à castidade. Pelo contrário, os casados, quando mantêm relações sexuais normais entre si, são tão castos quanto ao se absterem de sexo, pois a prática sexual é uma das formas adequadas de uso da faculdade ou potência sexual dentro do casamento.

Edward Peters finda sua explicação com uma lapidar conclusão: a Igreja ensina que todos são chamados a observar a castidade própria de seu estado de vida; a continência é exigida de todos os não casados (solteiros ou celibatários); e algumas pessoas solteiras, por motivos louváveis, optarão por não se casar e seguir o estado de vida celibatário, sendo que, em regra, na Igreja Latina (Ocidental), a opção pelo celibato é uma condição para ingresso na vida religiosa ou sacerdotal.

Obs: A questão do clero casado e sua relação histórica e atual com a chamada continência clerical (uma modalidade de continência específica exigida somente dos clérigos casados) será objeto de outros posts.